terça-feira, 1 de setembro de 2009

De goleador no futsal a muralha: a trajetória de Victor até virar ídolo gremista

A cachorra Alícia, sempre inquieta, não se entendeu muito bem com o portão da casa de Victor, no bairro Assunção, zona sul de Porto Alegre. Quando o goleiro viu, ela estava com o pescoço preso na engrenagem. A reação foi imediata: ele acelerou as mãos para tirar o bicho de lá o quanto antes. Alícia saiu em disparada, com os olhos arregalados, aliviada depois do susto que tomou. Por alguns segundos, mesmo sem perceber, a cachorra experimentou uma sensação que os torcedores do Grêmio conhecem muito bem. Alícia foi salva pelas mãos de Victor. Aos 26 anos, o ídolo gremista, após nova convocação para a seleção brasileira, recebeu a reportagem do GLOBOESPORTE.COM na tarde desta quinta-feira. A conversa foi em uma praça quase ao lado da casa dele, situada em uma rua de paralelepípedos, tranquila, arborizada, a poucos metros do Rio Guaíba (aquele que, na verdade, é um lago), quase uma simulação da calmaria que ele encontrou na infância em Santo Anastácio, pequena cidade do interior paulista. O bate-papo teve quase uma hora de lembranças do passado, com análises do presente e perspectivas para o futuro. O craque de luvas falou sobre o tempo em que, garante ele, foi goleador no futsal, comentou as dificuldades para virar profissional e lembrou até de um período como jogador do São Paulo. Abaixo, confira os principais trechos da entrevista com o goleiro que, pelo jeito, caminha a passos largos na direção da Copa do Mundo de 2010.
Victor (dir.): aos poucos, gostando do gol
GLOBOESPORTE.COM: Quais as primeiras lembranças que você tem jogando futebol? Victor: São no quintal de casa, desde muito novo. Os primeiros presentes que ganhei eram bolas. Lembro de uma foto em que eu tinha uns dois anos e aparecia chutando uma bola. Comecei a frequentar um clube de Santo Anastácio com seis ou sete anos. Onde tinha bola, tinha o Victor atrás. Lembro que no primeiro campeonato que disputei, tinha oito anos. Foi um torneio de futsal no ginásio da cidade. E você jogava na linha, certo?
Sim, ainda jogava na linha. Era bom ou perna-de-pau? Eu era bom, cara! Eu me virava bem. Era canhoto. Sempre fui maior que os outros garotos, então tinha um pouco mais de força. Tinha um chute forte de esquerda. Fazia muito gol. Por que virou goleiro, então? Como foi isso? Comecei a jogar no gol com uns 11 ou 12 anos, treinando futsal. Treinava na linha e brincava um pouco no gol. Aos poucos, fui gostando. O pessoal foi percebendo que eu levava jeito para goleiro. Aí comecei a disputar campeonatos escolares. Disputei uns dois assim. Meus amigos disseram que tinha treinamento no campo, que era para eu ir. Aí pensei: “vou lá ver”. Nunca tinha feito um treino específico. Jogava só no talento mesmo. Aí fui e comecei a treinar no campo, jogando pelo time da cidade, com 13 anos. Qual era o time? O Anastaciano (risos). Era um time amador, claro. Tinha um pessoal mais velho e outro mais novo. Eram duas turmas.


A carteirinha de registro de Victor na Comissão Municipal de Esportes de Santo Anastácio
Foi aí que você começou a levar a ideia de ser goleiro mais a sério?
Isso. Em 97, minha mãe estava ouvindo rádio e ficou sabendo de um peneirão do Guarani em Presidente Venceslau. Ela disse que era pra eu fazer o teste, já que queria ser jogador. Eu disse que não tinha chance, que era um monte de gente, mas ela mandou eu ir mesmo assim. Aí eu disse que nem tinha luvas. Ela foi, comprou luva, comprou uma camisa de goleiro que ela tem até hoje, comprou tudo parcelado, até chuteira. Fui pro peneirão, com mais de 300 garotos, e fui aprovado. Mas não fui chamado. Só que no mesmo peneirão tinha um olheiro do Paulista. Ele me viu e tempos depois ligou na comissão municipal de esportes da cidade perguntando de mim. Depois, ligou para minha mãe. Treinei um dia e fui aprovado. E fiquei dez anos lá.

Nesse momento, já era possível ver que você tinha qualidade para ser um goleiro diferenciado? Para ser goleiro, uma coisa é muito importante: não ter medo de levar bolada, de cair, de se bater no chão. Eu não tinha medo da bola, de cair para defender. Tinha essa facilidade. E era do que eu gostava. Moleque geralmente gosta de fazer gol. Eu também gostava, mas depois vi que era legal evitar também. E comecei a levar a sério essa brincadeira.

Como foi o início no Paulista? Em setembro de 97, fui aprovado, mas nesse meio-tempo teve um peneirão do São Paulo. Fiz, passei e fiquei um tempo treinando no São Paulo. Foram uns dois meses. Aí não deu certo e em janeiro de 98 me apresentei no Paulista. Passei a morar em Jundiaí em 98. Aí me mudei para Vinhedo. Depois, fomos para Valinhos. Era o Paulista, mas a estrutura era na cidade vizinha. E eu fui sozinho. São 600 quilômetros de onde meus pais moram. Só os visitava a cada dois, três meses. Foi difícil. O começo é complicado.
Nessa idade, os meninos muitas vezes sentem saudades de casa e largam tudo. Isso passou pela sua cabeça também? Nunca pensei em largar, nunca pensei em ir embora. Pensava em ir até onde desse. Se não desse certo, não seria por falta de tentativa. O mais importante é que sempre tive apoio dos meus pais. Meu pai viu a dificuldade que era. Ele conheceu o alojamento. Ele viu que não era fácil, mas nunca disse para eu ir embora, para eu ter uma vida normal. Como foi o processo de profissionalização? Virei profissional no final de 2001, depois de disputar uma Copa São Paulo de Juniores. Aí acabei sendo emprestado por seis meses ao Ituano. Depois, voltei para o Paulista como terceiro goleiro. Passei um bom tempo na reserva. Comecei a jogar tarde. O Rafael, que estava lá, vivia um momento muito bom, estava jogando muito. Sempre respeitei e esperei o momento. Aí ele foi para Portugal e assumi a vaga de titular em 2006. A estreia foi em um jogo bastante marcante, porque foi numa semifinal de Campeonato Paulista, jogando no Parque Antarctica contra o Palmeiras. O Márcio, que jogou aqui no Grêmio, iniciou a partida. Com uns dez minutos do segundo tempo, ele teve cãibras e não pôde continuar. Entrei, fiz boas defesas, saí do gol, não comprometi, e o Paulista empatou por 1 a 1. No segundo jogo, eliminamos o Palmeiras. Foi uma prova de fogo para mim. Eu era uma promessa, mas nunca tinham me visto no profissional. O futebol atrapalhou sua adolescência? Essa coisa de morar longe fez com que eu amadurecesse um pouco mais cedo na comparação com quem não é jogador. Sempre tive que responder por mim. Isso me amadureceu bastante, até de forma precoce. Mas minha infância foi muito bem aproveitada. Não sou de família rica, mas nunca precisei trabalhar para ajudar no sustento de casa.A infância eu aproveitei, mas perdi muita coisa na adolescência, de sair, de ter uma vida noturna. Saía quando estava de férias, mas muito pouco. Eu era bem disciplinado nisso. Não era de ficar me expondo. Você deixou uma carta de despedida ao deixar o Paulista, não é? Minha formação humana, não só do futebol, foi lá. Tenho muitos amigos, estudei lá, fiz a faculdade lá. Tenho um vinculo com a cidade. Pensei em uma forma de agradecer, de expressar tudo isso. Conversando com minha noiva, pensamos em alguma coisa e surgiu a possibilidade de uma carta agradecendo a todos. Entreguei para o pessoal do Paulista e para o jornal para que publicassem como a forma de agradecimento que eu tinha.


Aí você veio para o Grêmio. Em menos de dois anos, você consegue dimensionar o quanto sua vida mudou? Muita coisa mudou. O Grêmio dá uma visibilidade muito grande, ainda mais vivendo um bom momento. As coisas aconteceram muito rápido. O que não aconteceu em seis anos de profissional no Paulista, aconteceu aqui em um ano e meio. Foi uma reviravolta total. Mas tenho muita coisa para fazer, tem muito a acontecer. Chegar no topo é difícil, mas se manter é mais difícil ainda. Aconteceu rápido, mas ainda bem que aconteceu. Um belo dia, você descobre que virou jogador de seleção brasileira, que foi convocado. Como foi esse dia? Eu estava chegando no treino quando um segurança me deu parabéns, disse que eu tinha sido convocado. Naquele momento, eu já estava esperando, porque muita gente tinha me ligado na véspera, dizendo que meu nome estava na lista. Mas faltava a confirmação. Liguei pra minha noiva, liguei pra minha mãe. Ela chorou, eu não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Nas primeiras horas, a gente fica pensando se realmente aconteceu. Foi uma das maiores felicidades da minha vida. No Grêmio, se fala em Lara, Mazaropi, Danrlei. Você já pode entrar nessa turma? É um pouco cedo para me colocar nesse patamar. Além de excelentes goleiros, eles foram campeões de muitas coisas no Grêmio. Eu não conquistei isso. A partir do momento em que se conquista alguma coisa importante, se pode chegar a esse patamar. Ainda tenho muito a conquistar em termos coletivos. Você sente que está se aproximando da Copa do Mundo? Meu objetivo, meu plano de carreira, é a Copa do Mundo. Para isso, tenho que estar bem no clube. E resultado também é importante. Tenho que pensar de forma coletiva. Benefícios coletivos geram benefícios individuais. Estando na ponta da tabela, brigando por título, aumenta a visibilidade. É o que procuro fazer. Na ponta da tabela, a gente é melhor observado.



A Europa está de olho em você. A saída será em breve? E você faz questão de jogar fora? A perspectiva de sair existe. É uma tendência dos clubes. Infelizmente, eles precisam vender jogadores para manter as contas em dia. Para o atleta, também. A carreira é curta. Se o atleta tiver uma proposta que seja interessante, tem que pensar. Não descarto a possibilidade de jogar fora. Para me seduzir, tem que ser uma proposta boa, que eu pare e pense que vai resolver minha vida para criar meus filhos, dar boas condições para eles. O vinculo que tenho com o Grêmio é muito forte. Para sair, tem que ser algo muito bom. Qual a melhor lembrança que você tem do Grêmio até agora? É de quando o torcedor começa a gritar meu nome, como foi contra o Flamengo, também no pênalti que peguei do Boyacá Chicó. Isso é o que todo atleta sonha. Mas o que mais marcou, fora a seleção, foi receber o prêmio de melhor goleiro do Brasileiro do ano passado. Subi no palco ao lado do Rogério Ceni podendo desbancar um jogador que é um profissional acima de qualquer elogio. Eu olhava aquele monte de câmera, um monte de gente me observando. Isso me marcou muito. Se você deixar o Grêmio, vai ter carta de despedida também? Vamos esperar as coisas acontecerem, mas com certeza é algo para pensar. Tenho uma identidade muito grande com a torcida. É uma ligação muito forte. Vou pensar em algo legal, sim. Encerrada a entrevista, um homem e um menino, pai e filho, se aproximaram de Victor para tirar uma foto com o goleiro. O garotinho, esfregando os olhos de tanta timidez, carregava uma bola. Victor olhou para ele e tascou: - É gremista e tem uma bola vermelha, Lucas? Assim não dá... Com a frase, o goleiro mostrou que uma carta de despedida será mera formalidade se ele for negociado. A conexão entre Victor, o clube e os torcedores é definitiva

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